quarta-feira, abril 09, 2003

Peguei esse texto no blog da Gisele. É perfeito!

Gordos são proibidos de amar
Jorge Bastos Moreno*

É proibido amar. Eis o primeiro e mais cruel dos preconceitos impostos aos obesos. Uma autopunição que contraria a lei drummoniana: “Que pode uma criatura, senão entre criaturas, amar?”. Ao mesmo tempo que ao obeso de três dígitos na balança é atribuída uma capacidade sedutora e uma presença de espírito superiores aos dos chamados esteticamente normais, o fascínio que exerce sobre o alvo da paixão não consegue evitar a rejeição. Ela vem das palavrinhas mágicas: “Gosto de você como amigo”.

De tanto ouvir “não”, o obeso desiste de amar. Para fugir do círculo vicioso e doloroso da rejeição, ele se submete à única dieta que consegue cumprir: fechar o coração para a paixão. Foge das tentações deixando até de assistir a novelas e filmes que falam ou despertam paixões.

Mesmo os que viveram uma paixão intensa, como Tatyana Araujo de Carvalho, de 28 anos, estudante de comunicação, dela não guardam lembrança, nem a penduram na parede para não doer. Tatyana foi uma das pessoas com obesidade grave, atendidas na Clínica de Cirurgia da Obesidade do Aparelho Digestivo. Ela experimentou o amor. Mas foi abandonada pelo parceiro, ao atingir 110 quilos. Ela se casou com 62 quilos e começou a engordar com a gravidez. Chegou aos 120 quilos. Depois da separação, teve um namorado. Em três meses de namoro, ouviu com todas as letras:

— Você é alegre, inteligente, tem um rosto lindo, mas o seu corpo nos separa.

Tatyana, como outras pacientes com o seu estereótipo, nunca mais soube o que é ter namorado. A elas não se aplica outra definição de Drummond: “Quem não tem namorado é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo”. Não tiraram férias: foram demitidas pelo preconceito.

Demissão também é uma sina que persegue os obesos. E, com Tatyana, não foi diferente. Perdeu vários empregos e foi recusada em outros:

— Já fui aprovada na seleção e depois rejeitada, sem explicações, para a área de telemarketing.

Dois anos depois, Tatyana inscreveu-se novamente e, finalmente, foi aceita. Mas deixou o emprego, há dois anos, espontaneamente. O cirurgião bárico Luiz Felipe Osório, que fez a cirurgia em Tatyana, afirma que a discriminação da obesidade é mais grave que as outras. E, segundo ele, começa pelos próprios médicos:

— Um obeso, por natureza, já é paciente de altíssimo risco, pelas doenças que carrega.

Pior do que o preconceito é o descaso, que pode resultar em morte. Reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde, a obesidade não recebe os mesmos cuidados.

— Todos acham que a obesidade é um problema pessoal. A vida cotidiana se torna complicada: não há cadeira especial para pessoa obesa numa condução, no cinema, no teatro, nos consultórios médicos e de dentistas. Nos hospitais, faltam aparelhos de pressão com o manguito mais largo para braço de obeso, macas e cadeiras para o transporte, aparelhos para diagnóstico como tomográfico, mesa cirúrgica reforçada, leito nas unidades intensivas para receber pessoas mais pesadas — enumera Osório.

O médico recorre às clínicas veterinárias para animais de grande porte e à hípica para fazer exames de tomografias em seus pacientes:

— É constrangedor ter que deitar um paciente numa mesa preparada para eqüinos.

Segundo o médico, a incidência de mortes nas cirurgias de obesos deve-se, em boa parte, às condições desfavoráveis pela falta de aparelhagem adequada:

— Se um obeso acima dos 120 quilos precisar de atendimento médico de emergência, não há, no país inteiro, uma unidade hospitalar, pública ou privada, capacitada a atendê-lo.

As empresas de transportes aéreos e terrestres ignoram as estatísticas sobre a obesidade. No caso das companhias de aviação, os extensores de cintos de segurança são usados mais para demonstrações de rotina do sistema de segurança das aeronaves do que para a segurança do passageiro. Uma pessoa acima de cem quilos mal consegue sentar-se nas poltronas quanto mais espremer-se no cinto de segurança. Não raro, quando há três obesos no mesmo vôo, há risco de algum enfrentar turbulências com cintos desatados.

— Quando um gordo entra no banheiro de avião, já se sabe o que ele vai fazer lá dentro pela forma como entra, já que, dentro, é impossível mexer-se — costuma dizer Jô Soares.

Em terra, não é diferente. Uma das entrevistadas conta que resolveu apelar para a cirurgia do estômago depois que foi agredida verbalmente dentro de um ônibus por uma senhora idosa:

— Só tinha aquele lugar para eu me sentar. Quando o fiz, a senhora ao lado, aos gritos, me expulsou: “Você não se manca que este assento não serve para você, sua gorda!”

Dayse de Souza Mello, de 32 anos, 135 quilos, enfermeira, é outra que diz ser discriminada freqüentemente dentro de ônibus:

— Pior são transportes como kombis. Não param para uma gorda. Sou gorda e negra. A discriminação racial é pior. Mas não sei a que pesa mais. Diante dos olhares reprovadores, a gente se pergunta: será que estou vestida adequadamente?

Vistos como desleixados, sem auto-estima, os obesos não estimulam, como os portadores de deficiência física, campanhas semelhantes para o uso de aparelhos e locais especiais de acesso. Mas obesidade é uma doença e as limitações físicas impostas aos obesos são também deficiência física. Parte da responsabilidade por essa visão distorcida da obesidade é dos mercadores de dieta fácil, que dizem que “só é gordo quem quer”.

O reconhecimento da obesidade como doença reduz o preconceito e expõe os charlatães. Listar as doenças decorrentes da obesidade estimula parentes e amigos a se preocuparem com o obeso. Mas, nos casos mórbidos, quase não sensibiliza o doente. Claro, quem já perdeu seus sentimentos, acaba deixando de ter gosto pela vida. A manifestação de carência afetiva e sexual torna-se, por isso, sinal favorável de que o obeso ainda pode ser estimulado ao tratamento.

Entre pacientes já operadas, Felipe Osório notou que algumas mulheres que, antes da cirurgia, declaravam-se homossexuais, com a redução de peso passaram a manter relações heterossexuais. A explicação está no depoimento de A.N.C., de 40 anos, que tinha 127 quilos e agora está com 80:

— Sentia necessidade de sexo. Pensei até em recorrer a garotos de programa. Mas não estava preparada para isto. Fiquei carente e me envolvi amorosamente com uma mulher.

São poucas as exceções à regra da solidão entre os gordos. E, sempre que se fala nisso, um nome vem logo à cabeça dos obesos que já esgotaram sua capacidade de tentar emagrecer: o falecido compositor Antônio Maria. O senador José Sarney lembra-se daquele homem alto e obeso, nascido em Pernambuco, que acabou fazendo sucesso no jornalismo e na música. Conta Sarney ter ouvido do cronista, certa vez: “As mulheres, quando me vêem pela primeira vez, torcem o nariz e experimentam todo o tipo de sentimento da rejeição. Em cinco minutos de conversa, juram-me amor eterno.”

Antônio Maria povoa a fantasia dos obesos, solitários como o autor de “Ninguém me ama”.

— Se uma mulher é atraída só pela beleza física masculina, e não pela inteligência, os dois se merecem. Eu não quero uma mulher dessas pra mim — esbraveja Carlos Valente, 39 anos, 130 quilos.

Pode ser presunção, mas o cirurgião dos obesos atesta a fama dos gordos de serem inteligentes e carismáticos.

— Eles têm mais tempo para promover reuniões, jantares e festas. Seus corpos se movem mais lentamente que a mente. São engraçados, espirituosos. É difícil achar um obeso com inteligência limitada.

Uma das consequências da perda de peso é a desagregação do círculo de amizades e, não raro, até da família:

— Daí o preparo psicológico para a cirurgia. Depois de ser centro das atenções, o obeso passa a ter outra vida. Nessa nova vida, as festas não acabam, mas a comida e a exagerada proteção familiar sim.

Entre os pacientes de Felipe Osório, o biólogo Marcelo Baptista de Figueiredo é exceção. Marcelo chegou à clínica com 180 quilos. Operado há um ano e três meses, agora está com 97 quilos. E é desse biólogo uma das mais curiosas histórias contadas na clínica. Até hoje, Marcelo faz o mesmo trajeto a pé do metrô à sua casa. Durante anos, guiou um cego chamado Edmundo na travessia da rua, sempre no mesmo horário. Edmundo sumiu e recentemente Marcelo o avistou noutra parte da cidade. Apresentou-se ao cego e este não acreditou:

— Marcelo, o que houve?! Você está tão magro!

O ex-gordo ficou tão perplexo que nem conseguiu perguntar a Edmundo como ele descobrira isso: ficou a dúvida se foi pela voz ou pela concentração de massa no ar. Derrubou-se ali o ditado “o que os olhos não vêem, o coração não sente”. Sentem sim. Sentem tanto como a alma de Aline dos Santos, de 22 anos, 142 quilos, formada em informática. Como o amor que, na definição do poeta, “é bicho instruído”:

— Tento domesticar a carência enchendo a cabeça com o máximo de ocupações antes de dormir. Compenso a ausência de namorado com a família, meus bichos e me afogo nos doces.

Aline, apaixonada por um amigo, acabou se declarando e ouviu o que já esperava:

— Eles sempre dizem que eu sirvo para ser excelente amiga, mas como namorada não.

Aline diz que já foi vítima de preconceito até em lojas para obesos:

— É verdade! O obeso também é preconceituoso. Quem me atendeu mal foi uma obesa.

Já não é este o caso de Lorraine Peetrs Meyer, de 21 anos, 130 quilos, que já chegou aos 140. Lorraine não vai às lojas de tamanhos especiais.

— Visto o que a minha mãe compra para mim.

Lorraine, filha adotiva, acompanha a mãe e a irmã Juliana nas compras.

— Minha irmã tem 19 anos e veste 38. Vou com elas só até à porta da loja. Enquanto elas compram, vou à praça da alimentação e caio nos doces.

Mas a vida de Lorraine já começou a mudar. Neste momento, Lorraine tem “apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Sem desespero, ela decidiu buscar, no tratamento radical da cirurgia de estômago, a felicidade perdida. Nasceu gordinha e assim cresceu. Conhece o sabor de todas as guloseimas, mas não da paixão correspondida. Pensava que o mundo lhe seria feliz. “Os camaradas não disseram/que havia uma guerra/e era necessário/ trazer fogo e alimento”, como lembra Drummond.

Agora Lorraine encontrou o mais fiel dos companheiros: a vida, que renasce na determinação de mudá-la. Namora a vida porque descobriu que “namorar não é só juntar duas atrações/ no velho estilo ou no moderno estilo,/ com arrepios, murmúrios, silêncios,/caminhadas, jantares, gravações,/fins de semana, o carro à toda ou a 80,/lança, piscina, dia dos namorados,/foto colorida, filme adoidado,/rápido motel onde os espelhos/ não guardam beijo e alma de ninguém”. Namorar, diz o poeta, é algo além de beijo e sintaxe. Não depende de estado ou condição.

*JORGE BASTOS MORENO é obeso

(Jornal O Globo, Suplemento Jornal da Família, 06/04/2003)

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